Gravuras rupestres de mito indgena destrudas a golpes de picareta traduzem tenso com os interesses econmicos que cercam o territrio do povo Wauja, do MT 1lko
Era uma vez um guerreiro que causava inveja por sua fora e beleza. Defendeu seu povo do ataque do inimigo com bravura, mas seu rival Kamo (o Sol) revidou, transformando a casa de Kamukuwak em pedra. O guerreiro fugiu e se abrigou no cu, graas a ajuda de pssaros que abriram um buraco no teto da rocha. A gruta de Kamukuwak, a casa atemporal desse personagem mtico do Parque Indgena do Xingu, no Mato Grosso, entrou para a cosmogonia e para os rituais indgenas. Grafismos rupestres na parede da caverna contam, ou melhor, contavam, as histrias do guerreiro e de seu povo – imagens de uma poca que o Brasil, provavelmente, nem tinha sido descoberto.
O tempo ou, mas os inimigos de Kamukuwak continuam a postos e vivssimos. Em pleno sculo XXI, seus adversrios so bem reais, de carne e osso, e com interesses econmicos bem definidos. No lugar de transformarem a casa do guerreiro em pedra, como conta a cosmogonia indgena, agrediram seu povo, destruindo sua memria e atacando sua histria ancestral. A golpes de picareta, um criminoso desconhecido destruiu as antigas gravuras rupestres que compem a superfcie da gruta.Kamukuwak nos protege, ento precisamos proteger Kamukuwak e a forma como ele nos ensinou a estar no mundo -Pirat Waur cineasta, fotgrafo e educador do povo Wauja Para os Wauja, um dos 16 povos do Parque Indgena do Xingu, a gruta de Kamukuwak sagrada. Assim como para outros povos do alto e mdio Xingu, incluindo os Bakairi, que, apesar de no estarem no territrio indgena, vivem na regio e compartilham da cultura xinguana.
Seis anos depois do crime de vandalismo, os Wauja se vingam dos inimigos contemporneos de Kamukuwak – um contra-ataque que no poderia ser mais antenado com o sculo XXI. Recriaram o lugar sagrado em 3D em tamanho e peso idnticos aos da caverna original: oito metros de largura x quatro metros de altura e pesando uma tonelada. As gravuras rupestres foram restauradas digitalmente na superfcie da gruta, que deixou de ser uma caverna de pedra para ser replicada, em um estdio, em isopor e poliuretano. Para adquirir uma aparncia mais realista, a rplica ganhou pinceladas de pigmentos e vernizes.
Ataque cultural
Ancies ensinando sobre os significados das gravuras para crianas Wauja. (Foto: Gabriele Viega Garcia/ Acervo Instituto Homem Brasileiro/ 2014)
Numa expedio em setembro de 2018, os Wauja se depararam com uma cena de vandalismo — um ataque orquestrado a memria ancestral dos indgenas resultante das crescentes tenses entre as comunidades do Xingu e os interesses econmicos do agronegcio. Fazendas de soja, milho e algodo cercam todo o territrio e vm colocando em risco os rios, as manchas florestais remanescentes e os modos de vida dos indgenas no territrio.
Historiadores tradicionais Wauja reconstituindo atravs da memria os desenhos sagrados para equipe da Factum Foundation construir a rplica da Gruta do Kamukuwak. (Foto: Mafalda Ramos – 2018/ Acervo Associao Indgena Tulukai/Factum Foundation)
Os fragmentos dos desenhos da rocha foram deixados pelo caminho. Espalhados pelo cho, imagens destrudas de esqueleto de peixes, de mulheres e de outros elementos do cotidiano dos indgenas que representam a fonte de grande parte do repertrio grfico tradicional do Xingu – gravuras que, at hoje, so reproduzidos nas pinturas corporais, nas cermicas e nas cestarias, alm de inspirar danas e canes.
Pirat Waur, cineasta, fotgrafo e educador do povo Wauja. (Alaor Filho/ Fotos Pblicas)
“Quando chegamos a gruta, vimos as marcas de ferramenta. As gravuras tinham sido arrancadas da pedra”, relembra Pirat Waur, cineasta, fotgrafo e professor de Portugus para crianas na aldeia Piyulaga, uma das nove comunidades da Terra Indgena Batovi, o territrio original dos Wauja no Xingu, onde ele mora com a mulher e o filho.
Pirat levou um susto quando viu, pela primeira vez, naquela expedio em setembro de 2018, a cena de destruio em Kamukuwak. A ida a gruta era para iniciar um projeto de preservao documental da caverna, porque sabiam que a gruta sagrada corria srios perigos — infelizmente, no chegaram a tempo de impedir o vandalismo.
“Foi s tristeza. No tem outra palavra”, resume Pirat, que acompanhou todo o processo de feitura da rplica e enxerga na verso em 3D um ato de “resistncia” do seu povo: “Kamukuwak nos protege, ento precisamos proteger Kamukuwak e a forma como ele nos ensinou a estar no mundo”.
Foi Kamukuwak que nos ensinou como devemos nos relacionar com o mundo nossa volta, como respeitar um ao outro e como cuidar do meio ambiente
Akari Waur
Curiosamente, a palavra usada na lngua Wauja, do tronco lingustico Aruak, para referir-se a gravura (opopalapitse) a mesma usada para a rplica e tambm para fotografia. “Todas essas coisas so imagens que so muito reais, presentes e exatas”, analisa o antroplogo americano, Chris Ball, que, h 20 anos, trabalha com esse povo: “A prpria caverna de Kamukuwak, uma caverna feita de pedra, uma rplica da casa que Kamukuwak construiu para viver nos tempos mticos e onde ele ainda vive”.
Nas inmeras reunies que se seguiram ao crime para pensar como reagir ao vandalismo, Pirat expressava repetidamente o mesmo questionamento, lembra, seis anos depois, a arqueloga Gabriele Viegas: “Vocs destruiriam a escola que seus filhos vo buscar conhecimento? No! Ento, pergunto: por que querem destruir a escola das nossas crianas?” Ela assessora os Wauja desde meados dos anos 2000.
Foi em Aruak que Pirat contou o que viu aos seus parentes — os Wauja s falam portugus quando esto na presena de no-indgenas, que chamam de kajaopa. As crianas s comeam a aprender o idioma com pouco mais de dez anos — na primeira infncia falam na lngua materna, para garantir a preservao da cultura.
Apagamento de Kamukuwak
Akari Waur, cacique da aldeia Topepeweke, uma das nove comunidades do povo Wauja, em frente a rplica em 3D da gruta de Kamukuwak, instalada na aldeia Ulupuwene. (Alaor Filho/ Fotos Pblicas)
“Kamukuwak a origem de todo conhecimento cultural. Foi Kamukuwak que nos ensinou como devemos nos relacionar com o mundo nossa volta, como respeitar um ao outro e como cuidar do meio ambiente”, resumiu o cacique da aldeia Topepeweke, Akari Wuar, sobre como seu povo interpreta o ataque que sofreu.
poca da destruio, a pesquisadora americana Emilienne Ireland, interpretou o ato como sendo “conceitualmente equivalente profanao da Baslica do Santo Sepulcro, em Jerusalm, e destruio de todos os exemplares da bblia, ou seja, a eliminao do testemunho, do veculo e da mensagem”. Especialista em Antropologia Cultural, Ireland viveu entre os Wauja nos 1980.
Juntos, os grafismos rupestres gravados na parede da gruta so para os Wauja o que um livro para uma no indgena: uma fonte de conhecimentos. So tambm atravs dos desenhos que o guerreiro Kamukuwak, considerado pelos indgenas uma entidade extra-humana, ensina o ritual de furao da orelha – uma prtica que ocorre na agem da adolescncia para a vida adulta e se perpetua at hoje, sendo transmitida de gerao para gerao para formar os futuros chefes, teria sido realizada primeira vez justamente na gruta de Kamukuwak.
Todos esses ensinamentos de Kamukuwak teriam sido apagados para sempre, no fosse o engajamento dos indgenas, de uma equipe independente de antroplogos e arquelogos brasileiros e uma aliana internacional de artistas e pesquisadores estrangeiros. Alm da parceria com duas instituies: a espanhola Fundao Factum, uma referncia global em documentao de alta resoluo de artefatos culturais e na produo de fac-smiles, como j fizera com a tumba do fara Tutancmon, e a inglesa Peoples Palace Project (PPP), um centro de arte e pesquisa baseado em Londres.
Foi artista sonoro, compositor e cantor folk, o britnico Nathaniel Mann quem fez a conexo da Factum e da PPP com os Wauja, aps uma residncia artstica na comunidade, em 2017. Foi nessa poca que ele conheceu a histria da gruta de Kamukuwak, nunca mais esqueceu o que ouviu e, at hoje, se mantm conectado com esse povo.
Com a rplica, a preservao digital de Kamukuwak estar garantida, o que vai permitir que as diferentes geraes dos povos indgenas continuem visitando a gruta e mergulhando na sua prpria histria. Os ensinamentos do guerreiro sero reados ainda em dois outros projetos de realidade virtual: um para a comunidade e outro para os no-indgenas, que ser apresentado na COP30 em Belm, em 2025.
no centro da aldeia que as decises so tomadas — as aldeias xinguanas reproduzem sempre o mesmo modelo, com as casas tradicionais, cobertas de sap, em disposio circular e no meio dela que fica a chamada casa dos homens. Todos os dias, faa chuva ou faa sol, caciques e ancios se renem para decidir sobre todos os assuntos. Da realizao de um wanaki, como chamam mutiro na sua lngua, a construo de casas, de roa, at temas mais complexos, como foi o caso da parceria com a Factum e a PPP.
Patrimnio sem proteo
Historiadora indgena do povo Wauja, Yakuwipu Waur, acompanhada do seu filho Ukuhun, em visita a gruta de Kamukuak danificada. ((Foto: Pirat Waur – 2024/Acervo ISA/IHB/ATIX))
Embarcada num navio cargueiro, a rplica em 3D da gruta de Kamukuwak zarpou de navio de Valencia, na Espanha, cruzou o oceano Atlntico em direo ao porto de Santos, em So Paulo. A segunda etapa do trajeto foi feita de caminho, do litoral paulista para a aldeia Ulupuwene, o novo endereo da gruta de Kamukuwak. Ao todo, uma viagem de oito mil quilmetros.
A despeito de ser um stio arqueolgico desde 2002 e tombado pelo Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (Iphan) em 2016 — o tombamento mesmo foi em 2010, mas s foi publicado seis anos depois –, a caverna sagrada sempre viveu sob ameaa. O Iphan sequer chegou a instalar uma placa no local, avisando sobre o tombamento.
“Nossas polticas pblicas so espelhadas na arqueologia europeia. O Iphan sabe tombar igreja, centros histricos… mas no sabe o que fazer com paisagens dos povos nativos”, analisa Iv Bocchini, coordenador-adjunto do Programa Xingu do Instituto Socioambiental (ISA).
J se aram seis anos e os culpados pelo crime de vandalismo nunca foram identificados. A investigao criminal da Polcia Federal (PF) segue em segredo de justia. O Ministrio Pblico do Mato Grosso e a Fundao Nacional dos Povos Indgenas (Funai) tambm se envolveram na investigao.
Primeira terra indgena
O Xingu foi a primeira terra indgena homologada no pas, em 31 de julho de 1961. O ento presidente Jnio Quadros cedeu a presso do antroplogo Darcy Ribeiro e dos irmos Orlando, Leonardo e Cludio Villas-Bas, criou o Parque Indgena do Xingu, mas demarcou uma rea bem menor do que a superfcie inicialmente proposta — antes da demarcao, o territrio ancestral dos povos xinguanos inclua toda a extenso dos rios formadores do rio Xingu, um dos principais afluentes do Amazonas.
Com a demarcao do territrio, a gruta de Kamukuwak ficou fora do Parque Indgena do Xingu. A caverna est localizada dentro de uma fazenda de soja, o que vinha dificultando o o dos indgenas a gruta sagrada — a aldeia mais prxima ao local fica a 30km de distncia.
H cerca de dez anos, os xinguanos decidiram adotar a nomenclatura de Territrio Indgena do Xingu (TIX) no lugar de Parque Indgena do Xingu, por considerar que a mudana de nome condiz melhor com o cotidiano de luta e resistncia do seu povo nas aldeias.
Os Wauja somam 700 pessoas. Sobreviveram a conflitos com fazendeiros e garimpeiros, alm de epidemias. Nunca abriram mo dos seus conhecimentos fundamentais e das memrias ancestrais para a sua reproduo tnica e sociocultural. No seria com essa tentativa de apagamento cultural, feito por um ataque calculado para destruir a memria dos indgenas, que os Wauja sucumbiriam. Kamukuwak mudou de endereo, mas, para os indgenas, continua vivssimo.
Sobre a autora Liana Melo
Formada em Jornalismo pela Escola de Comunicao da UFRJ. Especializada em Economia e Meio Ambiente, trabalhou nos jornais “Folha de S.Paulo”, “O Globo”, “Jornal do Brasil”, “O Dia” e na revista “Isto”. Ganhou o 5 Prmio Imprensa Embratel com a srie de reportagens “Mfia dos fiscais”, publicada pela “Isto”. Tem MBA em Responsabilidade Social e Terceiro Setor pela Faculdade de Economia da UFRJ. Foi editora do “Blog Verde”, sobre notcias ambientais no jornal “O Globo”, e da revista “Amanh”, no mesmo jornal – uma publicao semanal sobre sustentabilidade. Atualmente reprter e editora do Projeto #Colabora.